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Unidos pelo robalo

Era uma manhã chuvosa e o carnaval se aproximava em Iguape, litoral sul de São Paulo, quando o pescador Edivaldo Aparecido Lopes jogou a rede pela última vez naquele dia para capturar manjuba, um pequeno peixe muito apreciado na região. Quando olhou para o lado, viu que seu colega de pescaria, que dividia com ele a canoa, havia pegado um peixe bem maior, que carregava na nadadeira dorsal um pequeno filamento de plástico. Naquele momento, Lopes lembrou-se de um cartaz colado numa parede da marina que em ele trabalhara algum tempos antes. O aviso alertava os pescadores que, caso capturassem um robalo com uma marca como aquela, deveriam ligar para o número de telefone gravado nela, e ainda ganhariam um brinde.

Lopes telefonou. Quem atendeu, há mais de 70 quilômetros dali, foi Domingos Garrone Neto, professor do Câmpus Experimental da Unesp em Registro e coordenador do Projeto Robalo. Graças a informações fornecidas por pescadores como Lopes e pesquisadores parceiros (número do animal, peso, tamanho e localização), o projeto criado em 2014 reúne hoje uma série de dados sobre o deslocamento no ambiente, a chamada ecologia espacial, do robalo-peva (Centropomus parallelus) e do robalo-flecha (C. undecimalis). Os resultados mais recentes foram publicados num artigo no periódico Fisheries Management and Ecology. “Nós fazemos uma grande divulgação e enfatizamos que o pescador pode, inclusive, levar o peixe pra casa. O que importa para nós é a informação sobre a recaptura”, diz Garrone.

Nós fazemos uma grande divulgação e enfatizamos que o pescador pode, inclusive, levar o peixe pra casa. O que importa para nós é a informação sobre a recaptura”, diz Domingos

Entre 2014 e 2017, mais de 2 mil robalos foram capturados, marcados e soltos. Desses, 42 foram recapturados, apenas um deles pela própria equipe de pesquisadores, o que dá uma boa ideia da importância dos pescadores para a pesquisa. Em diferentes parte do mundo, inclusive no Brasil, projetos semelhantes monitoram aves, baleias e outros animais através da colaboração dos moradores, o que ganhou o nome de ciência cidadã.

No artigo recente da equipe do Projeto Robalo, ainda que com apenas pouco mais de 2% de recapturas, foi possível ter uma boa ideia do deslocamento dos peixes no Complexo Estuarino Lagunar Iguape-Cananeia-Paranaguá, um mosaico de unidades de conservação entre os estados do Paraná e de São Paulo, em grande parte reconhecido como Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco. Seis robalos foram recapturados no Paraná depois de serem marcados no lado paulista, enquanto um recapturado em São Paulo havia sido marcado no lado paranaense do complexo. “Isso mostra que os peixes ultrapassam as fronteiras estaduais. O problema é que as regras que protegem as espécies não são as mesmas nos dois estados”, afirma o pesquisador.

Enquanto o Estado de São Paulo não tem uma determinação clara sobre a proibição da pesca do robalo no período reprodutivo, o Paraná proíbe desde 2009 a pesca das duas espécies nos meses de novembro e dezembro, para garantir a sua reprodução. Além disso, a regra determina que no resto do ano os pescadores amadores só podem levar até sete exemplares do peixe por embarcação, e ainda assim com tamanho mínimo de 40 e máximo de 50 centímetros para o robalo-peva e 60 e 70 centímetros para o robalo-flecha. 

“Essa abordagem é muito interessante, especialmente com relação ao tamanho máximo, já que os robalos são hermafroditas sequenciais protândricos, ou seja, nascem machos e depois sofrem uma mudança para o sexo feminino”, diz Garrone. A regra, portanto, protege ambos os sexos, já que um peixe grande pode ser uma fêmea, que vai dar origem a muitos filhotes ao longo da vida. “Permitir apenas a captura de exemplares com tamanho intermediário é uma estratégia de conservação importante, que contribui com a perpetuação das espécies sem inviabilizar as pescarias”, afirma.

Regras assim também são importantes quando se leva em conta que a pesca amadora atrai anualmente cerca de 20 mil pessoas só à parte paulista do complexo, movimentando US$ 4 milhões em torneios, hospedagem, compra de iscas, contratação de guias de pesca e serviços de marinas, só para citar alguns. Conservar os robalos, portanto, é fundamental para a economia local.

O rei da região
O Complexo Estuarino Lagunar Iguape-Cananeia-Paranaguá é composto de praias, ilhas, rios e estuários (encontro do rio com o mar), cercados pelo maiores remanescentes de Mata Atlântica do Brasil. Mesmo fora das áreas protegidas, o clima úmido e a paisagem rica em florestas e corpos d’água fazem o viajante que chega até ali pela primeira vez questionar como pode estar há poucas horas de viagem da maior metrópole da América do Sul. Além disso, a região conta com diversas populações tradicionais: índios, quilombolas e caiçaras que vivem do extrativismo.

A gestão das áreas naturais na região, portanto, leva em conta essas populações. Em algumas partes, a pesca é permitida apenas quando feita por pescadores artesanais. Contudo, pelo fato de a pesca amadora coexistir com a pesca artesanal na região desde a década de 1970, os diferentes níveis de acesso às áreas de pesca têm gerado conflitos entre os dois segmentos, uma vez que os pescadores amadores também requerem o uso de áreas que hoje são proibidas para a prática do turismo de pesca.

É difícil dizer com o está a saúde da população de robalos hoje na região, mas acreditamos que não está muito boa”, diz o biólogo Matheus Freitas, um dos coordenadores do Projeto Robalo no Paraná

O tema é complexo, pois embora usem apenas vara e anzol, pescadores amadores também podem gerar grande pressão nas populações estuarinas, como apontou um estudo de 2016 publicado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do Instituto de Pesca e da empresa Moro Fishing. A pesquisa mostrou que a pressão de pesca exercida por pescadores amadores em espécies como os robalos é maior do que a exercida na mesma área e no mesmo período pela pesca artesanal.

Ainda que as capturas por esta última possam ter sido subdimensionadas neste caso, em função das limitações impostas por um território tão extenso, é evidente para os especialistas que as duas modalidades compartilham cada vez mais impactos. Pescar e soltar, portanto, não é apenas uma boa prática, mas uma forma imprescindível para que a pesca amadora possa ser realizada de forma sustentável. “Essa certamente será uma maneira para se reduzir o conflito existente com a pesca artesanal e permitir novas discussões a respeito do compartilhamento de áreas de pesca e de redução desses conflitos”, acredita Garrone. 

O estuário é particularmente importante para os robalos. Pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) demonstraram que os juvenis têm grande resiliência a diferentes graus de salinidade, podendo mudar de área de acordo com a necessidade. Enquanto o peixe usa a água doce para se alimentar, precisa de uma certa proporção de sais para que possa se reproduzir. Ensaios realizados pelo engenheiro de pesca Eduardo Antonio Sanches, também professor da Unesp em Registro e membro do Projeto Robalo, mostram que os espermatozoides do peva e do flecha não se movimentam em água doce. “Machos com sêmen só foram encontrados em áreas de salinidade maior”, conta Sanches. Essa plasticidade para viver entre água doce e salgada pode ser uma vantagem evolutiva, mas também acarreta numa maior vulnerabilidade à pesca, já que os robalos podem ser encontrados no rio, no mar ou no estuário e, assim, estarem sujeitos a diferentes modalidades de pesca ao longo de toda a vida.

Para piorar, os dados a respeito do status populacional das duas espécies são incipientes para se ter uma boa ideia da saúde de suas populações. A fiscalização e o monitoramento da pesca amadora é deficiente, e as contagens realizadas pelo Instituto de Pesca, que determina o quanto pode ser pescado de cada espécie no ano, são realizadas apenas para os desembarques artesanais. Melhorar o monitoramento, incluindo as pescarias amadoras, se mostra essencial para determinar os limites da pesca, de forma que a atividade possa continuar de forma sustentável.

“É difícil dizer como está a saúde da população de robalos hoje na região, mas acreditamos que não deve estar muito boa”, diz o biólogo Matheus Freitas, pesquisador do Instituto Meros do Brasil e um dos coordenadores do Projeto Robalo no Paraná, junto com parceiros da UFPR e do Instituto Federal do Paraná (IFPR). “São vendidos muitos robalos abaixo do tamanho mínimo, o que já está causando nanismo populacional”, explica, se referindo à queda no tamanho médio dos indivíduos nos estados de São Paulo e do Paraná.

Pesque e solte
Parte da solução talvez seja trazer os pescadores amadores para o lado da conservação. No Projeto Robalo, a estratégia parece estar dando certo. Dos 42 peixes marcados recapturados, 24 (57%) foram pegos por esse tipo de pescador. “Esses parceiros normalmente trazem dados mais precisos sobre a localização em que o robalo foi capturado, além de medir, pesar e fazerem fotos”, diz Garrone.

Não por acaso, parte do trabalho no projeto envolve o contato com participantes de torneios de pesca, guias, pilotos de barco e outras pessoas envolvidas nesse universo, incentivando a prática do pesque e solte. Em 2015, os pesquisadores publicaram um artigo na Ocean & Coastal Management avaliando a resiliência dos robalos à essa modalidade de pesca amadora, em que o peixe é devolvido à natureza depois de medido e pesado. Em parceria com pesquisadores dos Estados Unidos e do Canadá, a equipe fez ainda recomendações para aumentar as chances de sobrevivência das duas espécies a esse tipo de estresse. “Os robalos são bastante resilientes ao pesque e solte, mas algumas medidas simples tornam a prática ainda mais segura”, afirma Garrone.

O monitoramento dos robalos vai ganhar um novo grau de refinamento com o uso da telemetria acústica, método em que uma marca eletrônica é implantada no animal e o sinal é captado por microfones especiais (hidrofones) debaixo d’água

Num esforço para que as boas práticas se disseminem, os pesquisadores fazem eles mesmos a pesagem dos peixes em alguns torneios, enquanto instruem os organizadores. “Normalmente os robalos [e outros peixes] ficam dois, três minutos expostos ao ar. É muito tempo para um animal que respira dentro d’água”, diz Garrone. “Nós fizemos medições em amostras de sangue durante esses eventos e constatamos que a exposição prolongada ao ar aumenta os níveis de lactato e glicose, causando um gasto de energia muscular que pode fazer falta quando ele estiver de volta à água”, explica. Uma das consequências desse desgaste é deixar o peixe mais vulnerável a predadores no momento em que volta ao ambiente. A solução, nesse caso, é pesar o animal dentro de um saco com água, estratégia adotada pelos pesquisadores do Projeto Robalo de forma pioneira em torneios de pesca de Registro e Cananeia, em São Paulo.

Além disso, o estudo recomenda testar os reflexos dos peixes, seguindo um protocolo conhecido pela sigla RAMP. São dois testes que consistem em avaliar, depois de deixar o animal descansando alguns minutos num viveiro, se ele responde a alguns estímulos: o primeiro é um aperto na base da cauda, o segundo consiste em deixá-lo de cabeça para baixo – se ele tentar se virar em até três segundos, está tudo certo. Se o peixe não responde a nenhum dos dois estímulos, é deixado por mais tempo no viveiro e repete-se o teste. Além disso, os pesquisadores recomendam substituir os anzóis do tipo “J” pelos circulares ou do tipo conhecido como “wide gap”, a fim de reduzir o risco de lesões no esôfago ou nas guelras, normalmente fatais.

 Os próximos passos da pesquisa envolvem avaliar a resistência de outras espécies ao pesque e solte, como as traíras (gênero Hoplias), peixes bastante comuns no território brasileiro e sobre os quais não existem estudos dessa natureza. Além disso, o monitoramento dos robalos vai ganhar um novo grau de refinamento com o uso da telemetria acústica, método em que uma marca eletrônica é implantada no animal e o sinal é captado por microfones especiais (hidrofones) debaixo d’água. Essa técnica garante informações mais completas e não depende da recaptura do animal marcado”, diz Garrone, que já utilizou o método para estudar a ecologia espacial de raias marinhas e de água doce (ver unespciência nº 44).

No que depender de alguns pescadores, ajuda é que não vai faltar. O eletricista Jair Bassoni pesca robalo por lazer em Registro há 40 anos. Numa dessas pescarias, fisgou um exemplar de peva com a marca do projeto. Não só mediu, pesou e informou a localização, como fotografou o animal e enviou a foto pelo celular. “Eles me disseram que ele tinha sido marcado 292 dias antes e que ganhou 200 gramas nesse período”, conta. Ao colaborar com o Projeto Robalo, ele espera que não falte peixe pelo menos nas próximas quatro décadas.

 

Fonte: Unesp Ciência, Set/2018 (http://unespciencia.com.br)

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